Friday, January 27, 2006

A PRENDA DE NATAL

ANTERIOR:

http://ahonradaprincesadeharum.blog.spot.com


Alta, bem torneada, carinha de anjo, busto levantado cheio de uma sensualidade mais inconsciente do que consciente, pernas bem feitas, proporcionadas ao todo e prontas a fazer sonhar pelo seu voluptuoso, ela fazia diariamente uma viagem de autocarro do emprego para casa e de casa para o emprego, sempre no mesmo carro e sempre um olhar distante mas sensual.
Os veículos eram iguais aos que circulam ainda hoje em Inglaterra, de dois pisos, pois a história passa – se nos anos cinquenta. A guerra na Europa terminara havia poucos anos, a vida era bastante dura e fora uma sorte para ela ter conseguido aquele emprego na fábrica. Não sei se por predilecção, o que é certo é que foi a preferida em relação a algumas centenas que não conseguiram o mesmo intento.
Aconteceu que numa segunda – feira, um rapaz vindo da província, procurava um amigo numa serração com o objectivo de lhe pedir para lhe arranjar emprego na mesma. Entrou no autocarro da nossa já conhecida jovem e cruzou com ela o olhar tornado fogo instantaneamente. Sentou – se a seu lado mas não houve qualquer conversa até ao momento em que perguntou à rapariga “Não sabe, porventura, informar – me onde fica por aqui uma serração?” “Por acaso sei”, respondeu ela solícita e sorridente pois agradava – lhe o contacto com o jovem másculo e tão atraente! “Passo lá todos os dias”. “Então se me faz o favor, quando passarmos ao pé…” “Esteja descansado que eu aviso”. E assim foi, chegados que foram perto do local ela avisou “É na próxima paragem, faça favor de tocar a campainha”. E ele tocou. Qual não foi o seu espanto quando, após ter descido, ver a interlocutora a descer também e a colocar – se a seu lado. Ao observar a cara de admiração do mancebo explicou “Isto aqui é um pouco complicado, labiríntico, e como vou cedo tenho tempo de o acompanhar ao sítio.” Chegados lá ela despediu – se mas a simpatia desenvolvida no íntimo dos dois forçou – os a perguntar quase simultaneamente “Então não vamos voltar a ver – nos?” Trocaram então as direcções e combinaram um encontro no dia seguinte no Jardim da Estrela. Um beijo era o que cada um deles, lá no seu íntimo, desejaria ter dado ao outro mas contiveram – se, não fosse parecer mal ou, pior ainda, estragar o idílio que tão sumarento, parecia, se estava a desenvolver.
Tal como combinado, no dia a seguir lá estavam eles à conversa e António, asssim se chamava o rapaz, contou que havia sido aceite na serração. Ficou por ele radiante a moça e o nosso efebo aproveitou a euforia em que se encontrava para ganhar coragem e confidenciou – lhe que estava apaixonado por ela e que a queria levar ao altar. Margarida, este era o nome da cachopa, respondeu com um beijo imenso e voluptuoso que não deixava margem para duvidar do amor profundo e sensual que começara a uni – los.
Casaram. Os ordenados eram baixos e viviam com embaraço. Como as origens de ambos eram de gente modesta, para não dizer pobre, nenhum deles possuía qualquer objecto valioso à excepção de um relógio de família muito valorizado pela antiguidade que o António usava e que já tinha sido do avô. Objecto de valor estimativo apreciável, não havia nada neste mundo que o fizesse separar daquela peça. Mas nunca conseguira poupar para um cordão de ouro ou prata para o prender ao passador das calças. Segurava – o com um torgalho vulgar comprado um dia num retroseiro. Mas sempre que passava por uma ourivesaria os olhos iam – se - lhe para os cordões e no seu íntimo suspirava mas, paciência e dizia para consigo “Hão – de vir dias melhores e então hei – de conseguir o meu cordão”.
Singularmente, a protagonista do nosso conto tinha também um desejo secreto: comprar umas travessas lindas e caras que todos os dias lhe atraíam o olhar quando passava por aquele local. E tal como o marido dizia de si para consigo que melhores dias surgiriam para o futuro e lhe proporcionariam a compra das travessas.
Já dissemos algures que Margarida preterira muitas outras na entrada para a fábrica entre numerosas concorrentes. O segredo vai o leitor sabê -- lo. O contratador, ao presenciar aquela pulcritude cristalina, tem logo uma voz dentro de si a dizer – lhe “Fá – la tua amante.” O resto é comezinho. O tempo foi passando e ela que chegou a trocar com ele alguns olhares significativos, deixou de o encorajar, no entanto, após o himeneu pois amava veramente o seu António. Por seu turno, o capataz também começou a envolvê - la, a obsidiá – la. Mas a moça, enamorada do marido, fazia de conta que nada percebia. Um dia ele aguardou que toda a gente saísse e, de sem mais nem menos, agarrou – a e beijou – a na boca. Num acto reflexo súbito ela reagiu mal e deu – lhe uma estalada. Acto contínuo, o cínico do capataz despediu – a.
Se o dinheiro minguava até ali, vindouramente, então, passou a ser ainda pior. Havia dias em que até a fome parecia querer ser sua dama de companhia.
Havia um vizinho, um senhor de meia-idade que em tempos emigrara para a América e, embora por lá tenha comido o pão que o diabo amassou, o que é certo é que acabou por arranjar um empregozinho certo que lhe proporcionou umas economias e uma reforma de tal maneira que, devido à diferença de câmbios, o homem era considerado rico. Era trivialmente conhecido pelo “dolas”, deturpação do vocábulo dólar e que significava que o homem era rico porque tinha estado na América.
Este senhor “Dólas”, chamemos – lhe assim, tinha como imperativo de si para consigo levantar – se cedo todos os dias para contemplar a rapariga, extasiado, a abalar de casa. Era o que se pode chamar de paixão assolapada. Tinha cãs, o cabelo já lhe entrava um bocado pela cabeça dentro de modo a deixar espelhar um pouco o sol no couro cabeludo luzidio, a elegância de outrora perdera – se com a obesidade devido ao desafogo em que passou a viver, de modo que permanecia extático no seu amor de “voyeur” inculpado.
Houve, no entanto, uma vizinha que lhe deu a boa - nova de que a sua “Dulcineia” tinha sido despedida da fábrica onde trabalhava e, assim, renasceu a esperança ao nosso homem de concretizar de algum modo aquela paixão. Disse interiormente “E se eu a contratasse para fazer umas limpezas, pode ser que, a pouco e pouco fosse sendo mais condescendente.”
Encheu – se de audácia, espreitou a oportunidade de falar com ela e expôs – lhe o assunto “Dona Margarida, se me desse um minuto, eu dizia – lhe uma coisa importante para si e para mim.” Ela pensou logo o pior, “Querem ver que o doido do homem me vai fazer alguma declaração de amor?”, mas procurou manter a serenidade e disse “Vá, diga lá, que sou toda ouvidos.” Ele então propôs – lhe umas limpezas no fim – de – semana.
Ao mesmo tempo pensava de si para consigo “Se começares a assediar – me dou – te uma lambada e venho – me embora” replicou – lhe “ Está bem.” Ele pagou – lhe logo um adiantamento avultado que lhe deu muito jeito.
Entretanto na serração começavam a despedir pessoal. O negócio rompera a correr mal e era preciso abrandar as despesas. Como é evidente trataram logo de dispensar pessoal. Mais dia menos dia já estava vendo o seu António na rua.
Começou então a ser mais condescendente para com o homem sem contudo lhe admitir familiaridades.
O marido foi por fim despedido na onda de exoneração de pessoal. A aflição passou a ser inquilina naquele lar.
Um dia em que Margarida estava pedindo na mercearia para lhe fiarem mais uma conta pois que “Em vindo dias melhores a saldaria”, deu “de caras” com uma antiga companheira de trabalho, muito bem arranjada, luxuosamente vestida o que não era habitual pois trajara sempre moderadamente de acordo com os parcos salários. “Mas o que se passa contigo?”, “Viraste fidalga?” Então ela contou. Um dos sócios da firma viu – a um dia e, sob qualquer pretexto passou a utilizá – la para poder vê – la até que conseguira o ensejo para a convidar para jantar o que ela expeditamente aceitou. Serviu – lhe bons vinhos e por fim, já um pouco tonta lobrigou -- se convidada para passarem a noite num motel! … A partir daí não lhe faltou mais dinheiro. Antes de se afastarem Margarida pediu – lhe que se interessasse para ser readmitida, “Está descansada que não me esqueço", disse a despedir – se. Que fosse pela “cunha” ou por se lembrar da Margarida que preferira às outras por gostar dela, o que é certo é que passados que não eram oito dias estava de novo na empresa. O capataz, ao vê – la, estranhaou mas ao saber de quem fora o cuidado compreendeu mas não tudo. Pensou que, sendo a outra a interessar – se o patrão não tinha segundas intenções.
De qualquer modo, um dia em que descuidadamente ela se deixou ficar sozinha com ele, o homem não resistiu e de sem mais nem menos agarrou - a e encostou - a firmemente a si procurando um sítio para a deitar ao mesmo tempo que lhe puxava pela blusa a tentar tirar - lha. “Estúpido!..., não!...", gritava a pobre a tentar desenvencilhar– se e cujas forças eram coarctadas pelo avanço poderoso do bruto. Por sorte dela e revés do outro, o sócio que a metera e que não resistira a andar por ali para ir mirando aquela que desde o primeiro dia que pusera os pés na fábrica apreciava com deleite, assistiu ao espectáculo em nada gratuito pois que desta vez quem foi para o olho da rua foi o capataz. Pensado e de pronto executado. Não há raiva mais forte do que a do amor. Dos livros, da experiência e de todos os tempos!...
Depois convidou – a para jantar. Agradecida pelo que se havia passado, “Está bem”, disse e partiram para um restaurante dos bons. Antes de darem por finalizado o encontro pediu – lhe para fazer algumas limpezas lá em casa. A mulher tinha – o abandonado e levara os filhos. O processo de divórcio estava em desenvolvimento.
Margarida, marcada pela dureza da vida amolecera. Um dia que o “patrão” sorrateiramente chegara por detrás e a agarrara dando – lhe um beijo de paixão, não reagiu. Até gostou e correspondeu.
No dia de Natal foi procurar as travessas que sempre almejara e comprou – as. Passou também por uma ourivesaria e adquiriu um grosso cordão de ouro para o “seu” António prender o relógio. À noitinha, já aconchegados no ninho com a ceia quase pronta ela, sorridente, estendeu – lhe a oferenda. Olhou para ela e viu que também tinha as travessas. Abriu. No primeiro impulso os olhos brilharam – lhe de alegria. Mas logo a seguir reflectiu, compreendeu e uma tristeza vastíssima, profunda se espelhara em seu rosto. Sombriamente levantou – se, abriu a porta e foi – se embora…

▪▪▪Fim▪▪▪
▪▪▪

A SEGUIR: http://oferiadodaneve.blogspot.com/